segunda-feira, 14 de abril de 2014

Em casa de ferreiro...

... O espeto é de aço.

Certo, sejamos francos, em casa de ferreiro o espeto é de pau mesmo. Eu não sei como é com cada cuteleiro do mundo, obviamente, mas sei que com alguns outros, pelo menos, ocorre o mesmo que ocorre comigo: fazem tantas peças para clientes que se esquecem - ou não dão conta - de fazer coisas para uso pessoal.

Vontade, no meu caso, não falta.

Como é de conhecimento daqueles que convivem comigo, eu tenho um hobby que envolve, entre outras práticas, uma forma esgrima reconstruída, usando espadas, lanças e machados embotados. Parece infantil ou selvagem, mas acreditem, há um bocado de seriedade e pesquisa no meio. E obviamente equipamentos de proteção e uma incineração monetária inigualável.

Bom, o que pode parecer ridículo é que apesar de ter duas espadas (a menina dos olhos de qualquer um) eu comprei uma e reformei a outra. A que eu comprei era uma porcaria desbalanceada com os componentes do hilt (guarda, empunhadura e pomo) feitos com material de quinta, com qualidade de sexta e técnicas de oitava. De sétima categoria era a lâmina da espada que eu reformei. Bom, um golpe da minha "monstruosidade australiana" e a "coisa barata chinesa" de meu amigo quebrou.

Acreditem se quiser, ele soldou tudo e me deu o resultado, então fiz uma guarda, empunhadura e pomo e lá está ela, ao lado da outra, que também tive de refazer guarda, empunhadura e pomo.

E o que isso importa?

Hoje comecei a fazer uma espada pra mim. Uma digna de um cuteleiro de profissão.
Não é a primeira que faço pra mim, no entanto.

Faz uns dois anos eu forjei uma lâmina cega. No calor do momento, empolgado com o sucesso da têmpera, quis ver até onde ela ia. Sim, sem revenir antes.
Primeira - desculpem a expressão - cagada irremediável que fiz. Depois de ter feito apenas três ou quatro facas eu fiquei feliz por ter conseguido forjar uma espada e ter dado um tratamento térmico nela. E eu destruí todo o trabalho.

Depois, com um bocado de raiva forjei uma segunda. A coisa mais feia que já saiu da minha oficina, pra ser honesto. Temperei e fiz o revenimento no maçarico. Lógico que tinha tudo para dar errado, mas funcionou. Ou eu achei isso.

Usei-a por um ano até que ela quebrou faz uns meses. Jurei que não terminaria nenhuma outra espada até que eu tivesse condições técnicas pra isso. E prática, claro.

De qualquer modo, vim melhorando no meu ofício. Ou pelo menos gosto de achar que vim melhorando.

Esse ano resolvi tentar uma coisa diferente. Fiz algumas espadas por desbaste e fiquei feliz com os resultados formais da coisa. Óbvio que com uma lixadeira de cinta a coisa ficou mais viável.
Fiz o tratamento térmico de duas delas conforme aprendi lendo o material de alguns cuteleiros estrangeiros e resolvi testar uma mudança na terceira. A terceira quebrou.

O que importa é que "peguei o ponto certo" nas outras e isso me deixou confiante. Sem inventar mais nada comecei uma espada para mim hoje.

A razão pelo surto? O outono. Eu amo o outono e hoje o dia estava muito "outonal". Não iria conseguir dormir sem fazer algo meu para mim.

E de baixo daquele céu nublado, vento úmido e o silêncio na vizinhança que só o frio garante, comecei o embate com mais uma criança da minha oficina. Uma criança que não irá embora, dessa vez.

Perdoem-me pelas fotos de baixa qualidade, mas é difícil ficar com uma esmerilhadeira numa mão e uma câmera fotográfica na outra, então tiro as fotos com meu celular, que já está quebrado e não precisa de tantos cuidados.


O primeiro passo é sempre o desenho. É através dele que eu consigo entender um projeto antes dele tomar forma. Foi feito às pressas, mas farei uma versão melhorada.


As dimensões da lâmina.



Depois eu levo o desenho pro aço. Nesse caso uma chapa de aço 1070.


Com a peça cortada, acaba a parte "fácil". Chega a hora de fazer a cava/fuller da espada.


Com os dois fullers prontos chega a hora do tratamento térmico.

É de se pensar se eu faço a parte do fio. Nesse caso não, já que é uma lâmina que deve ser completamente cega por questões de segurança. A espessura total da chapa é pensada para compensar esse peso extra, ou seja, uma espada afiada não seria feita com uma chapa de aço igual à que usei aqui e sim uma mais grossa.

Geralmente normaliza-se a peça antes, mas não costumo normalizar quando eu apenas desbasto o material, o que significa que primeiro tempero e depois faço o revenimento.

Como eu faço a têmpera no carvão e é um momento que exige muita atenção, não pude fotografar.

No momento em que escrevo a lâmina está passando pelo segundo ciclo de revenimento e ainda falta todo o polimento.

É engraçado comparar uma espada dessas com uma "de verdade", mesmo feita por desbaste. Mas mesmo sendo um serviço infinitamente mais simples, ainda é emocionante, principalmente quando aquela montanha de carvão está em chamas e a lâmina da espada corre horizontalmente no centro de todo o fogo, saindo sempre mais e mais clara do que quando entrou. E há sempre aquela ansiedade em retirar a peça resfriada de dentro do óleo sabendo que ela não está trincada.

Agora sim, na minha casa o espeto será de aço, ainda que não tenha ponta.

Embora... Bem, tenho pelo menos três facas que prometi a mim mesmo por fazer, com meio caminho andado. Um dia elas ficam prontas.

Acompanhem minha página no FaceBook para saberem como vai terminar essa brincadeira.

Grande abraço a todos!

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Forjando mais do que aço

Este é um assunto em que poderia passar horas - talvez dias - falando sem nem mesmo parar para respirar.

Não se trata de um título literal, aplicável num texto sobre trabalhar com outros metais ou com qualquer coisa que possa ser martelada até tomar uma forma. Não mesmo. O que quero dizer é algo mais emocional, a relação com o trabalho e com os clientes também, claro.

Sempre gostei de ver o meu tipo de trabalho como uma aproximação com um outro tempo, em que o suor valia um bocado a mais do que vale hoje. Não me refiro apenas à cutelaria, mas à qualquer atividade que envolva esmero, atenção e, por que não?, carinho. Afinal, nem todo cuteleiro enxerga a cutelaria da maneira romântica que eu tenho - e isso não é necessariamente um problema, esses tendem a se frustrar menos sendo mais racionais, acho.

De qualquer modo, para os que me conhecem, não é segredo que às vezes fico tempos longuíssimos diante da Olga - é, minha forja tem um nome mesmo - apenas observando-a. Há uma atmosfera diferente quando você tem uma forja à carvão e não me refiro às qualidades da chama. Ali nascem contos, cantos. Não se trata apenas de aço sendo empurrado ou dobrado, existe algo a mais que nenhuma definição poderia dar conta.

E daí? Eu posso soar como um lunático, eu sei. Só que eu gosto disso. E percebo que não sou o único, afinal.

Tem uns dias um novo cliente me contatou. Graças a um vídeo que um amigo colocou na internet têm surgido interessados em meus machados. Simples machados feitos com técnicas nada ortodoxas, mas que possuem aquela minha dose de suor e dedicação que os tornam únicos. Enfim, o cliente veio perguntar o preço de um desses e a história - curta, mas importante pra mim - começa aí.

Após decidirmos alguns detalhes, ele disse que tinha o interesse de manter a machadinha e um dia passá-la para seus filhos ou netos, como uma herança familiar. Um pensamento incomum nos dias de hoje, mas que compartilho. Pronto, mais um elo formado.

Decidi que faria para ele o machado com uns incrementos sem custos extras. Ele se interessou por uma faca que eu tinha disponível também e pediu um isqueiro, no qual estou trabalhando. No fim ainda ganhou um desconto.

Mas a moral da história não é apenas o relato de um "causo" de cuteleiro e sim a força que um pedaço de aço afiado passa a ter deste momento em diante. Mesmo a faca, feita por desbaste, sem toda aquela figura do ferreiro martelando um pedaço de algum metal misterioso, ganha um novo sentido. Não são apenas objetos compráveis, são histórias.

Quando dei vida ao machado hoje, não era uma ferramenta para bushcraft, mas um possível legado familiar. Eu não estava mais forjando uma machadinha e sim um emblema, um símbolo. Por isso uso a expressão "dar vida".

De toda forma, pode parecer uma historinha boba, sem importância, mas que faz com que eu me identifique com o que eu faço. Faz com que eu veja a potência do meu trabalho ou o de qualquer outro que coloca sua alma nas coisas que cria - seja uma poesia, dois acordes num violão, uma pintura ou uma machadinha para bushcraft.