terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Cutelarias, no plural mesmo.

"Mas como assim no plural? Se é um ofício, ele é abrangente o suficiente pra abarcar todos aqueles que trabalham com ele, não?" Não. E esse é um assunto por vezes polêmico, pois tudo vai de opção, preferência, mercado e tudo mais que se possa imaginar.

A cutelaria, obviamente, é uma forma de artesania cujo produto final seja uma lâmina, seja ela uma espada, uma faca, um machado, uma foice... Enfim, qualquer objeto cujo fim principal seja cortar. Então não posso falar de cutelaria se estou fazendo ferraduras para cavalos, mas poderia, em tese, imprimir uma faca de plástico numa impressora 3D e chamar esse ofício de cutelaria. E é nesse ponto que a palavra no plural começa a fazer mais sentido.

Existem infinitas "formas de cutelaria", embora obviamente todas partam do mesmo princípio e compartilhem muita coisa em comum. Acreditar que é tudo a mesma coisa é complicado, seria como dizer que escultura é tudo igual, por se tratar de um objeto tridimensional produzido pela mão humana, ainda que existam métodos, finalidades, estilos e materiais diversos.

Pense num hippie esculpindo massa epoxi numa praça, com a forma de duendes. Agora pense em Michelangelo. Ambos são escultores. E ninguém faria um incensário com uma obra de Michelangelo, portanto não estou me referindo à qualidade desses trabalhos.

Com facas não seria diferente. Existem facas para os mais diversos fins. E não me refiro ao fato de ser uma hunter, skinner, fighter, edc ou o que quer que seja, mas sim no por que elas foram feitas. "Como assim?", você pode perguntar. Fácil: existem facas que não serão usadas uma única vez depois que saírem da oficina de seu criador. E essa provavelmente vai ter um valor financeiro muitas vezes maior que aquela que aguenta anos na lida.

Pode parecer estranho, mas é isso mesmo. E aí, de vez, que faz sentido a cutelaria ali no título ficar no plural.

No ramo da produção de qualquer objeto artesanal existe a questão do requinte, do mercado, do público alvo. Uma faca de colecionismo precisa ser uma faca de colecionismo, não uma simples faca "de uso", por assim dizer. E uma faca de uso, apesar de poder ser uma faca de colecionismo, precisa ser uma faca de uso. Isso sem falar facas de outros fins.

Existem peças que precisam ficar em mostruários de vidro, trancadas a sete chaves, por serem quase obras de arte, no sentido técnico da coisa. Exitem outras que ficarão na coleção particular de algum excêntrico, sendo usadas apenas naqueles eventos socialite para cortar o churrasco gourmet com requintes de etiqueta. Existem profissionais, como churrasqueiros ou sushi-men, que adoram ter um produto diferenciado na hora de trabalhar, pois assim se sentem mais íntimos da profissão e ainda podem mostrá-lo como uma espécie de comprovante de identidade. O mesmo vale para quem está nessas atividades por hobby. Até mesmo entre o pessoal do bushcraft tem aqueles que ostentam lâminas em damasco, mesmo sabendo que a manutenção constante da lâmina pode ser uma atividade à parte. Uma espada, por exemplo, dificilmente será usada pra cortar alguém, embora muitos artistas marciais tenham o hábito de colecionar espadas, tanto para exibição quanto para demonstração de corte. E existem lâminas que serão usadas à exaustão diariamente, unicamente como ferramentas.

O mais incrível de todas essas possibilidades (e outras mais) e que cada uma delas abre um leque ainda maior. Têm por aí ferramentas caras e as baratas, de qualidade meramente satisfatória pra um ou dois usos - eu mesmo lembro-me de um machado de 5 reais que comprei faz uns dez anos e que cortou umas lenhas e depois caiu no chão e quebrou bem no olhal. Têm espadas para testes de corte que são industriais, feitas aos montes e algumas que além de serem feitas à mão, combinam características mais artísticas. Têm churrasqueiros de todos os gostos e bolsos. E até pessoas que criam uma relação afetiva com o objeto, assim como o cara que se recusa a vender o carro porque foi nele onde ele aprendeu a dirigir ou que lembra das memórias da casa onde passou a infância, etc, etc, etc... Agora pensa que aquela faquinha é "a cara de tal pessoa".

O que quero dizer é que o cuteleiro precisa ter tudo isso em mente na hora de acender a forja (seja pra forjar ou só para o tratamento térmico, no caso de desbaste). Isso porque o valor final da peça vai depender dessas escolhas. E o valor final vai influenciar no tipo de comprador. E o tipo de comprador vai definir que fim vai ter a faca.

Pra exemplificar ainda mais, imagine uma lâmina de aço valiriano com cabo em chifre de unicórnio e bainha trabalhada em pele de dragão (desculpem pela piada). Eu não vou fazer uma faca com os materiais mais caros (o que não significa que sejam bons) pra trabalhar de forma descuidada e poder cobrar uma merreca. Só um pedaço de marfim de narval, por exemplo, já custa mais da metade do que eu ganho num mês. E não adianta eu fazer a faquinha perfeita e simpática, com materiais comuns, igual a que todo mundo faz e querer cobrar uma fortuna.

Além disso, pense que existem materiais de qualidade ruim, mas que possuem valor altíssimo. Ouro não serve pra lâminas, mas se você dizer uma lâmina de ouro, você provavelmente vai conseguir vendê-la pra algum milionário, se você tiver o network necessário pra isso. Ferro forjado (o wrought iron, no caso) é de péssima qualidade se for comparar com aços modernos, mas mesmo assim é indispensável praqueles interessados em reconstruir com 100% de acuidade algum trabalho de época, por ser o material usado antigamente. E isso vai fazer o trabalho ganhar mais respeito e mais valor, mesmo que o material seja um pedaço de trilho de trem de 200 anos que estava no quintal da sua avó.

Mas o que é importante pensar, sempre, é na qualidade do produto, além do material. Uma peça de cutelaria tem que ser perfeita para os fins a que se preza, mesmo que esse fim seja o de ficar na bainha do gaúcho durante um desfile do CTG ou dentro dos vidros de um museu. Nem toda lâmina precisa derrubar árvores e cortar carnes, embora seja bom que elas o façam. Nem toda lâmina precisa ser agradável aos olhos, resistente a umidade, inoxidável, barata, cara, feita com materiais reciclados, feita com materiais nobres ou o que quer que seja. Mas naquilo pra que ela foi feita ela deve ser excelente. E nem todo cuteleiro precisa estar disposto a fazer lâminas pra todos esses fins.

Mesmo assim, é muito ditador dizer "não pode" ou "deve". Na verdade você pode criar todo um discurso (e não digo inventar lorota, mas sim elaborar um motivo real) pra justificar um preço ou uma identidade visual e se pagam mesmo depois de comparar com outros produtos de qualidade semelhante, parabéns, você conseguiu.

O que eu digo com isso tudo é bem simples: tente criar uma cutelaria própria ou se alinhe de acordo com cuteleiros que te agradam, embora não tente ser igual a eles. Ter uma identidade própria é o que vai fazer seu trabalho ser reconhecido, não sua assinatura.

Afinal, se o seu trabalho é tão bom que chega a ser igual ao de alguém que você admira, por que vão escolher você e não esse outro alguém?