segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Cutelaria de lápis, borracha e papel.

Um desenho é a tradução de uma ideia em linhas, de forma que palavras jamais conseguiriam expressar, por mais palavras que fossem escritas usando tais linhas. Só que na cutelaria ou em qualquer outra forma de trabalho que não seja o desenho em si, o desenho nunca é o passo final. Ele é um embrião, uma possibilidade, um pontapé inicial.

Eu me utilizo do desenho desde antes de aprender a andar, se eu for pensar bem. Como qualquer um, aprendi a desenhar antes de aprender a escrever e eu sempre treinei o traço assim como treino a escrita e assim como treino minha martelada.

Uma coisa que gosto em particular é desenhar ideias que tenho de lâminas. Antes de começar a forjar algo é sempre bom saber onde se quer chegar e rabiscar algo numa folha de papel é sempre um bom meio de se ter uma prévia ou pelo menos um norte a seguir.

É claro que eu seria um cínico se eu dissesse que sempre sigo os desenhos à risca e tudo o mais, já que às vezes o tridimensional pede um caminho próprio e foge do original. Ou porque simplesmente opções melhores surgem durante o processo, coisas que só o suor te possibilitou pensar e que a mesa limpa e clima tranquilo do ato de desenhar jamais seriam capazes. Afinal, etapas diferentes geram ideias diferentes e acho que um bom artesão deve saber captar todas essas ideias distintas e selecionar quais realmente são boas ou quais só pareciam boas no calor do momento.

A vantagem de colocar esses pensamentos no papel é que você pode guardá-los sem se esquecer. E é uma boa forma de saber se uma coisa tem potencial ou se simplesmente ficaria horrível. É claro que tem gosto pra tudo, mas... Não.

Pra mim é importante buscar um certo realismo na hora de se desenhar uma faca ou espada ou o que quer que seja. Digo, se for um estudo para algo tridimensional, real e funcional. Não escrevo aqui sobre o desenho como forma de arte, afinal de contas, mas sim como estudo para visualizar um provável devir.

O naturalismo é essencial porque, se eu apenas fizesse linhas cruas, não veria uma faca. Poderia ver uma boa composição que sugere uma peça, mas não A peça. Por isso gosto de fazer ranhuras nas madeiras dos cabos, jogo de luz e sombra, proporções bem definidas, texturas, diferenças de força no traço... Só tenho problemas com cores. Chega um ponto que vira informação excessiva e as cores raramente farão jus às cores dos materiais, com suas nuances próprias e particularidades infinitas.

No fim eu necessito de papel e lapiseira. Eu tenho ideias demais, problema crônico. E geralmente estou ocupado demais com minhas encomendas e com trabalhos que "vão vender", que acabo fazendo de forma mecânica em boa parte das vezes. Um desenho me consome menos tempo e às vezes é o bastante para que eu controle a vontade de fugir das obrigações e começar a forjar facas que vão ficar na oficina por um tempão por falta de comprador e, por mais que eu adore a ideia de fazer esse tipo de serviço, tenho contas pra pagar.

Pra terminar, repito que desenhos são possibilidades, embriões. Eles crescem de outra maneira quando saem do papel, mas sempre possuem a forma inicial do que eu possa pensar, uma forma quase palpável. Pelo menos visualizo o trabalho antes de fazê-lo e isso diminui um pouco a ansiedade em alguns casos, mesmo que aumente em outros.








 


quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Bloom Iron - Do minério ao aço

Eu sempre tive interesse em fazer esse negócio, mas sempre fiquei receoso por causa do espaço, mas deixei de me importar com os vizinhos da oficina depois de, no começo da Copa do Mundo, eles ficarem com funk alto o dia todo. Então, cinza neles!

A primeira tentativa que fiz deu errado, mas vou colocá-la aqui também a título de registro e explico o que deu errado.

Mas o que diabos é bloom iron/steel? Antigamente, antes da revolução industrial e do aparecimento do alto forno essa era uma das maneiras de se obter ferro. Praticamente a única maneira que se conhecia na Europa e África, já que o damasco/wootz que existia nesses continentes eram sempre importados da Ásia. No Japão o minério provinha de outra fonte e as fornalhas eram diferentes, mas o material resultante era quase o mesmo.

Bom, primeiro a gente arruma o minério. Na falta serve ferrugem, carepa e até pó de ferro e aço. Aposto que todo mundo tem quilos disso na oficina, é só ter a paciência pra juntar.

E aí vem a fornalha. É importante que ela tenha um bom tamanho, porque se não não atinge a temperatura. A primeira fornalha que fiz foi bem pequena, ideal pra carburizar ou descarburizar o material depois de obtido, se souber controlar a temperatura e o ar (o que eu não sei), mas péssima pra fazer o tal bloom.



Tinha uns 30cm de altura e uns 25cm de diâmetro.


Essa chapa no meio era pra separar o "minério" da primeira carga de carvão. Esse é o método catalão, vi no site do cuteleiro Jesus Hernandez. Não gostei muito de fazer assim, mas ele conseguiu.

Pra minha primeira tentativa não quis usar minério, daí fiz com uns 5kg de tudo que tinha na oficina, de pregos pequenos a carepas que ficam ao redor da bigorna.


Bom, pode não ter dado certo, mas rendeu umas fotos bem legais.

Uma coisa importante, além do tamanho é que as paredes da fornalha não podem ter muitas trincas. A integridade dela é essencial pra manter o oxigênio lá dentro e fazer com que a temperatura não caia.
Esse buraco na parte de baixo serve pra escorrer a escória que vai se formando com tudo aquilo que não é ferro dentro do minério. Basicamente silicatos, que servem inclusive de fluxo nos primeiros estágios do forjamento do bloom. Mas falo disso de novo depois.

Bom, depois de umas duas horas, 5kg de lixo férreo da oficina e uns 6kg de carvão, chegou a hora de quebrar a fornalha e ver o que tinha lá dentro.


A primeira vista era promissora. Apesar de não escorrer nenhuma escória o processo inteiro, parecia ter funcionado.

É importante que o tuyere (o caninho que entra soprando ar na fornalha) seja de cerâmica ou se for de ferro, que tenha uma parede grossa e uma boa saída de ar. Um outro defeito aí dessa primeira, que justamente causou a não formação do bloom devido a uma baixa temperatura, foi que o tuyere entupiu. Era um ferro bem fino e foi derretendo e tampando com a escória que foi formando.


Aqui a massa inteira. E a resposta pra falta de escoamento de escória: isso aí tudo é a bendita!. Primeira batida no martelo e explodiu pra todo lado. Passei no esmeril e confirmei. No fim tinha um pouco de ferro lá dentro, mas nada forjável. Só umas bolhas dentro de toda a escória que se formou.

De qualquer forma, aqui vai a foto da fornalha acesa durante a primeira tentativa, com a presença do meu amigo Davi de Aquino, que me auxiliou nas duas tentativas que fiz:


E vamos pra segunda tentativa! Não deu um sucesso absoluto, mas pelo menos rendeu alguma coisa no final.

Começando do ZERO dessa vez, resolvi investir num pouco de hematita. Como foi uma brincadeira que renderia história, mesmo se desse errado, não tive medo de pagar quase 100 reais em 5kg de minério de ferro no centro de São Paulo. Agora arrumei um fornecedor de Minas Gerais e ele me vende a 2 reais o kg. Mas tudo bem, paguei 10 vezes mais pra testar o conceito.


Como dá pra ver é daquelas polidas. Era o que tinha pro dia, afinal. Tem umas pedras maiores, que comprei pra mostrar o material bruto mesmo.


Depois foi quebrar o minério todo. Mais uma vez o Davi ajudando, contando piadas e apertando o maldito botão da câmera enquanto eu ria. Não, sério, ele quebrou bastante carvão e bastante hematita também. Apesar de fazer quase dois meses dessa brincadeira, tem hematita quebrada espalhada na oficina até hoje.


E essa foi a segunda fornalha. Não tão estilosa quanto a primeira, mas muito maior. Basicamente tijolos velhos assentados com argila misturada com areia. Como ela foi acesa em cima de uma laje, peguei a gaveta de um criado mudo meio apodrecido e enchi de terra, aí não tinha risco de estourar o concreto embaixo, já que a terra amortece boa parte do calor.

Essa fornalha afunilava conforme subia, pra prender mais o calor lá dentro. Na base tinha uns 30cm de diâmetro interno, na "chaminé" tinha pouco mais de 10. 60cm de altura.

Ia jogando a carga de hematita e de carvão de vinte em vinte minutos. Aquela latinha ali no chão era a marcação. Meia latinha a cada carga.


Aqui é uma foto dela antes de acesa, por trás. Sem muito mistério: uma ventuinha soprando ar pelo tuyere. O tuyere foi mais grosso dessa vez e eu revesti ele todo com argila pra não esquentar muito e derreter. Isso funcionou, pelo menos.

Depois de algumas horas a fornalha estava cheia de rachaduras, mas sobreviveu bravamente. A gente acendeu a bicha lá pelas duas da tarde e o negócio foi por um bom tempo.


O Davi pegou gosto pela coisa e ficava cutucando o carvão o tempo todo pra descer mais uniforme. É bom fazer isso às vezes, que daí não fica bolsões de ar quente, quanto mais carvão lá dentro, melhor. O irônico é cutucar o fogo com um florete de esgrima quebrado.

Bom, o que ocorre ali dentro é uma equação de redução, tanto que esse tipo de fornalha é chamada de fornalha de redução. Nesse pilar cheio de carvão aceso a temperatura é bem alta, mas não o suficiente pra deixar o ferro líquido. O que acontece é que o minério acaba derretendo, os silicatos e tudo o mais, não o óxido de ferro. O óxido é então reduzido e vira ferro e derrete em pequenas quantidades que vão grudando na superfície uma das outras. Por isso ele sai com formato de esponja no final. Esse material, dependendo da temperatura e atmosfera, vai acumulando carbono do carvão e virando aço.

Dá pra perceber que o negócio tava quente. Escorreu bem pouca escória, mas escorreu. É bom desobstruir o tempo todo a saída pra não entupir e ficar blocos de escória muito grandes. Não é realmente negativo, mas de tiver muita escória, no final vai ter uma massa cheia dela com um pouco de ferro dentro. Aí é meio incômodo pra trabalhar.


Bom, de novo rendeu melhores fotos que resultados, mas tudo bem...


A última carga. Daí foi deixar o carvão baixar até uns 30cm de altura só e a bagunça tava feita.

Depois de umas 4 horas acesa, foi a triste hora de quebrar. Dá um pouco de dó quebrar a fornalha, mas precisa. Então lá vamos nós:



De novo parecia uma massaroca promissora. Mas daí fiz o teste do "amasso". Basicamente tinha que amassar se fosse pressionada, se quebrasse era só escória e tinha dado errado. Como o material também é meio frágil nesse estágio não é bom apoiar numa bigorna e bater com o martelo. No entanto se for bater com algo mais macio, dá pra apoiar numa superfície dura. A pergunta foi "o que eu tenho de macio que seja o suficiente pra amassar tudo isso?" já que saiu um baita dum monstro.


Bom, peguei uma viga de madeira de uns 2m de altura, bem grossa e pesada e com o bloom em cima da bigorna fui batendo como um pilão. Geralmente o pessoal lá fora usa uns martelos de madeira bem grandes, ou deitam uma viga sobre o bloom e batem com a marreta em cima. A ideia é amortecer o impacto pra ele não quebrar tanto nesse primeiro estágio. Óbvio que eu fiz errado e o bloom também não ficou lá muito bom, além do teor imenso de carbono que deu e blablablá. Ficou quebradiço pelo simples fato de ser ferro fundido e não ferro ou aço, maaaassss, nessa parte eu perdi pouco material. Eu perdi muito mais depois, quebrando e sumindo dentro da forja e tudo o mais. Mas na próxima tentativa vai dar certo. Vamos na fé!

Depois foi deixar a coisa esfriar, coisa que não devia ter feito, devia ter comprimido um pouco mais pra facilitar o trabalho que viria a seguir.

Aí pesei. Deu 2kg de alguma coisa. Passei no esmeril e apesar de ter pelo menos meio quilo nisso aí de escória acumulada junta, o resto era ferro e escória mais ou menos misturados.

A coisa daí pra frente foi meio frustrante. Pra quem foi no FACAS esse ano viu um pedacinho desse troço na minha mesa.

Eu fiquei desencanado quando eu não consegui caldear nada. Daí foi de mal a pior, foi quebrando e quebrando e ficando vários pedacinhos pequenos, quase impossíveis de serem forjados. Se eu enfiasse na minha forja, que é a carvão, eu iria perder o ferro lá dentro. Com o calor a escória ia derreter e entupir minha forja e o ferro ia queimar e eu não ia aproveitá-lo. E claro que fiz isso! Resumindo, perdi MUITO material por bobeira e por falta de bom senso.

Os pedaços restantes ficaram lá na oficina por um bom tempo, aí neste sábado fiz um curso de damasco com o Remo Nogueira e eu vi o tamahagane que ele fez num curso recentemente, bem mais conciso que o meu bloom. Ele até me arrumou um pedaço do material já refinado, que pretendo usar nalguma faca, mas aí eu fiquei com mais vontade ainda de fazer esse negócio acontecer.

Peguei os caquinhos da minha experiência e falei "nem que vire o dorso de uma puukko, isso vai vingar!".

Aprendendo a caldear melhor, até que foi dando certo. Claro, os pedaços eram pequenos e era complicado, mas fiz umas gambiarras e vendo no que dava.


Fiz 4 barrinhas pequenas. E aí foi esquentar até a temperatura de caldeamento.
Na primeira vez dispensa fluxo, porque a escória serve muito bem. melhor que o borax, inclusive, já que tem um ponto de ebulição mais alto. Foi esquentar, amassar e caldear.

Basicamente transformei essas barrinhas em chapas pequenas. Juntei de novo e caldeei. E foi quebrando e fui perdendo mais partes.

Um cara experiente conseguiria aproveitar pelo menos 1,5kg do bloom original de 2kg. Eu consegui aproveitar uns 100g. Mas valeu o aprendizado. Numa comunidade de malucos que fazem isso direto no FaceBook vi que dei sorte em conseguir 100 gramas logo na segunda vez, fazendo na louca e sem ninguém mais conhecedor do assunto pra me explicar as coisas.

Na segunda tentativa morreu uns 5kg de hematita e cerca de 18kg de carvão.

Só faltou uma foto final da barrinha que consegui, menor que uma caneta.

Quanto a considerações finais do material: O material tem MUITA impureza. Trabalhá-lo antigamente é o que dava combustível pra mitos quanto a "aço dobrado tantas mil vezes e melhor". Realmente era, porque ele ficava muito mais homogêneo e livre de incursões de escória ou carvão mesmo. Quanto mais eu esticar e dobrar, melhor o material. De qualquer modo, nunca vai ser tão bom quanto qualquer aço industrial de hoje. Mesmo assim não é de todo ruim, se for pensar que aquelas katanas super famosonas eram feitas disso e tinham boa performance. Sabendo trabalhar ele presta ao papel, mas uma mola disso seria péssima, por exemplo. Existem aplicações e aplicações, afinal. Pra cutelaria é um aço que se presta, mas nem de longe é o melhor, mesmo porque o teor de carbono é sempre uma surpresa.

Já em relação à minha vontade de fazê-lo: eu realmente adorei o processo. Desde o meio de julho estou com uma caixa com 20kg de minério de ferro já moído esperando pra virar aço. Gosto da aparência final do material e sabendo mexer pode dar boas lâminas. Sem contar a pompa de dizer "eu que fiz essa porcaria!"

Da próxima vez, porém, acho que o resultado sai bastante melhor, já que já sei onde não errar de novo. Só preciso descobrir onde eu errei sem saber agora.

Sobre a experiência, ela é única e valeu cada gota de suor.

Abraços!

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

III F.A.C.A.S

Para aqueles que não ficaram sabendo, ocorreu no último fim de semana o III F.A.C.A.S, a Terceira Feira Anual de Cutelaria Artesanal de Sorocaba.

Como havia anunciado em minha página do Facebook, iria expor na feira, minha primeira mostra como expositor e a ansiedade foi imensa.

Posto com um certo delay porque só agora tive tempo de realmente sentar na frente do computador e escrever um pouco. A correria para a feira e a que está vindo depois foi e continua sendo enorme. Mas tudo deu certo.

A cutelaria nacional possui bons eventos, mas olhando de fora a gente nunca entende direito como eles funcionam. Quando se é público existe uma certa timidez ao entrar em uma área repleta de pessoas que trabalham e entendem muito sobre lâminas, aços e derivados. Uma timidez que persiste mesmo quando você também trabalha na área, mas de forma mais despretensiosa.

No entanto, a pretensão de viver desse ofício  ficou mais forte e me arrisquei. Dei a cara à tapa e ouso dizer que se levei algum, não reparei.

Uma coisa interessante do cenário cuteleiro - se é que tal termo existe - é que há um certo entrosamento entre aqueles que o compõe, uma solidariedade rara em outros ambientes. Óbvio que seria uma completa ingenuidade acreditar que tudo são flores, que todos são amigos ou que não existem atritos na área, mas há um certo respeito com o iniciante e isso é o que mais me agrada. O "novato" é acolhido pelo meio de uma forma impressionante.

Foi gratificante receber elogios de pessoas com o triplo de minha idade e com pelo menos metade disso se dedicando à fatura de facas. E mais ainda, é claro, poder beber dessa fonte de informações e conhecimento em uma hora de conversa aqui e mais outra hora de conversa ali.

A ideia que eu tenho de feiras e salões é um pouco diferente da habitual, afinal: não estou ali para ter lucros, mas para ver e ser visto por "meus pares" (embora eu tenha que comer muito arroz e feijão para ser par da maioria ali). Se dá pra bancar as despesas, a feira já é lucrativa. Rever amigos, fazer novos, conhecer outros com quem só tenho contato digital... É uma lista de fatores positivos sem tamanho que somente um evento deste tipo oferece.


Foi uma experiência excelente e que será repetida inúmeras vezes. Afinal, agora sou oficialmente "cuteleiro", já que não tenho mais a desculpa de ser "estudante". Então que venham as próximas!

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Em casa de ferreiro...

... O espeto é de aço.

Certo, sejamos francos, em casa de ferreiro o espeto é de pau mesmo. Eu não sei como é com cada cuteleiro do mundo, obviamente, mas sei que com alguns outros, pelo menos, ocorre o mesmo que ocorre comigo: fazem tantas peças para clientes que se esquecem - ou não dão conta - de fazer coisas para uso pessoal.

Vontade, no meu caso, não falta.

Como é de conhecimento daqueles que convivem comigo, eu tenho um hobby que envolve, entre outras práticas, uma forma esgrima reconstruída, usando espadas, lanças e machados embotados. Parece infantil ou selvagem, mas acreditem, há um bocado de seriedade e pesquisa no meio. E obviamente equipamentos de proteção e uma incineração monetária inigualável.

Bom, o que pode parecer ridículo é que apesar de ter duas espadas (a menina dos olhos de qualquer um) eu comprei uma e reformei a outra. A que eu comprei era uma porcaria desbalanceada com os componentes do hilt (guarda, empunhadura e pomo) feitos com material de quinta, com qualidade de sexta e técnicas de oitava. De sétima categoria era a lâmina da espada que eu reformei. Bom, um golpe da minha "monstruosidade australiana" e a "coisa barata chinesa" de meu amigo quebrou.

Acreditem se quiser, ele soldou tudo e me deu o resultado, então fiz uma guarda, empunhadura e pomo e lá está ela, ao lado da outra, que também tive de refazer guarda, empunhadura e pomo.

E o que isso importa?

Hoje comecei a fazer uma espada pra mim. Uma digna de um cuteleiro de profissão.
Não é a primeira que faço pra mim, no entanto.

Faz uns dois anos eu forjei uma lâmina cega. No calor do momento, empolgado com o sucesso da têmpera, quis ver até onde ela ia. Sim, sem revenir antes.
Primeira - desculpem a expressão - cagada irremediável que fiz. Depois de ter feito apenas três ou quatro facas eu fiquei feliz por ter conseguido forjar uma espada e ter dado um tratamento térmico nela. E eu destruí todo o trabalho.

Depois, com um bocado de raiva forjei uma segunda. A coisa mais feia que já saiu da minha oficina, pra ser honesto. Temperei e fiz o revenimento no maçarico. Lógico que tinha tudo para dar errado, mas funcionou. Ou eu achei isso.

Usei-a por um ano até que ela quebrou faz uns meses. Jurei que não terminaria nenhuma outra espada até que eu tivesse condições técnicas pra isso. E prática, claro.

De qualquer modo, vim melhorando no meu ofício. Ou pelo menos gosto de achar que vim melhorando.

Esse ano resolvi tentar uma coisa diferente. Fiz algumas espadas por desbaste e fiquei feliz com os resultados formais da coisa. Óbvio que com uma lixadeira de cinta a coisa ficou mais viável.
Fiz o tratamento térmico de duas delas conforme aprendi lendo o material de alguns cuteleiros estrangeiros e resolvi testar uma mudança na terceira. A terceira quebrou.

O que importa é que "peguei o ponto certo" nas outras e isso me deixou confiante. Sem inventar mais nada comecei uma espada para mim hoje.

A razão pelo surto? O outono. Eu amo o outono e hoje o dia estava muito "outonal". Não iria conseguir dormir sem fazer algo meu para mim.

E de baixo daquele céu nublado, vento úmido e o silêncio na vizinhança que só o frio garante, comecei o embate com mais uma criança da minha oficina. Uma criança que não irá embora, dessa vez.

Perdoem-me pelas fotos de baixa qualidade, mas é difícil ficar com uma esmerilhadeira numa mão e uma câmera fotográfica na outra, então tiro as fotos com meu celular, que já está quebrado e não precisa de tantos cuidados.


O primeiro passo é sempre o desenho. É através dele que eu consigo entender um projeto antes dele tomar forma. Foi feito às pressas, mas farei uma versão melhorada.


As dimensões da lâmina.



Depois eu levo o desenho pro aço. Nesse caso uma chapa de aço 1070.


Com a peça cortada, acaba a parte "fácil". Chega a hora de fazer a cava/fuller da espada.


Com os dois fullers prontos chega a hora do tratamento térmico.

É de se pensar se eu faço a parte do fio. Nesse caso não, já que é uma lâmina que deve ser completamente cega por questões de segurança. A espessura total da chapa é pensada para compensar esse peso extra, ou seja, uma espada afiada não seria feita com uma chapa de aço igual à que usei aqui e sim uma mais grossa.

Geralmente normaliza-se a peça antes, mas não costumo normalizar quando eu apenas desbasto o material, o que significa que primeiro tempero e depois faço o revenimento.

Como eu faço a têmpera no carvão e é um momento que exige muita atenção, não pude fotografar.

No momento em que escrevo a lâmina está passando pelo segundo ciclo de revenimento e ainda falta todo o polimento.

É engraçado comparar uma espada dessas com uma "de verdade", mesmo feita por desbaste. Mas mesmo sendo um serviço infinitamente mais simples, ainda é emocionante, principalmente quando aquela montanha de carvão está em chamas e a lâmina da espada corre horizontalmente no centro de todo o fogo, saindo sempre mais e mais clara do que quando entrou. E há sempre aquela ansiedade em retirar a peça resfriada de dentro do óleo sabendo que ela não está trincada.

Agora sim, na minha casa o espeto será de aço, ainda que não tenha ponta.

Embora... Bem, tenho pelo menos três facas que prometi a mim mesmo por fazer, com meio caminho andado. Um dia elas ficam prontas.

Acompanhem minha página no FaceBook para saberem como vai terminar essa brincadeira.

Grande abraço a todos!

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Forjando mais do que aço

Este é um assunto em que poderia passar horas - talvez dias - falando sem nem mesmo parar para respirar.

Não se trata de um título literal, aplicável num texto sobre trabalhar com outros metais ou com qualquer coisa que possa ser martelada até tomar uma forma. Não mesmo. O que quero dizer é algo mais emocional, a relação com o trabalho e com os clientes também, claro.

Sempre gostei de ver o meu tipo de trabalho como uma aproximação com um outro tempo, em que o suor valia um bocado a mais do que vale hoje. Não me refiro apenas à cutelaria, mas à qualquer atividade que envolva esmero, atenção e, por que não?, carinho. Afinal, nem todo cuteleiro enxerga a cutelaria da maneira romântica que eu tenho - e isso não é necessariamente um problema, esses tendem a se frustrar menos sendo mais racionais, acho.

De qualquer modo, para os que me conhecem, não é segredo que às vezes fico tempos longuíssimos diante da Olga - é, minha forja tem um nome mesmo - apenas observando-a. Há uma atmosfera diferente quando você tem uma forja à carvão e não me refiro às qualidades da chama. Ali nascem contos, cantos. Não se trata apenas de aço sendo empurrado ou dobrado, existe algo a mais que nenhuma definição poderia dar conta.

E daí? Eu posso soar como um lunático, eu sei. Só que eu gosto disso. E percebo que não sou o único, afinal.

Tem uns dias um novo cliente me contatou. Graças a um vídeo que um amigo colocou na internet têm surgido interessados em meus machados. Simples machados feitos com técnicas nada ortodoxas, mas que possuem aquela minha dose de suor e dedicação que os tornam únicos. Enfim, o cliente veio perguntar o preço de um desses e a história - curta, mas importante pra mim - começa aí.

Após decidirmos alguns detalhes, ele disse que tinha o interesse de manter a machadinha e um dia passá-la para seus filhos ou netos, como uma herança familiar. Um pensamento incomum nos dias de hoje, mas que compartilho. Pronto, mais um elo formado.

Decidi que faria para ele o machado com uns incrementos sem custos extras. Ele se interessou por uma faca que eu tinha disponível também e pediu um isqueiro, no qual estou trabalhando. No fim ainda ganhou um desconto.

Mas a moral da história não é apenas o relato de um "causo" de cuteleiro e sim a força que um pedaço de aço afiado passa a ter deste momento em diante. Mesmo a faca, feita por desbaste, sem toda aquela figura do ferreiro martelando um pedaço de algum metal misterioso, ganha um novo sentido. Não são apenas objetos compráveis, são histórias.

Quando dei vida ao machado hoje, não era uma ferramenta para bushcraft, mas um possível legado familiar. Eu não estava mais forjando uma machadinha e sim um emblema, um símbolo. Por isso uso a expressão "dar vida".

De toda forma, pode parecer uma historinha boba, sem importância, mas que faz com que eu me identifique com o que eu faço. Faz com que eu veja a potência do meu trabalho ou o de qualquer outro que coloca sua alma nas coisas que cria - seja uma poesia, dois acordes num violão, uma pintura ou uma machadinha para bushcraft.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Uma reintrodução.

Boa tarde!

Bom, é fácil notar que não tenho usado mais o blog para publicar meu trabalho. É chato ficar repostando a mesma coisa na minha página do Facebook, no meu perfil do Facebook, no DeviantArt, em fóruns na internet e tudo o mais. O Facebook por si só tem dado conta de muito recado, a ponto de eu precisar deixar as descrições em dois idiomas para atender ao público internacional que, embora nunca compre, deu um "curtir" lá e merece pelo menos entender o que é que está sendo dito.

Enquanto aqui... Bem, nos últimos meses recebi apenas dois emails de gente que chegou a mim por este blog. Por isso resolvi mudar um pouco as coisas.

Inicialmente esta página será mantida apenas em português. Infelizmente nem sempre tenho tempo de escrever exatamente a mesma coisa duas vezes, então pra evitar descontinuidades, português será a língua no momento. Talvez num futuro eu mude para o inglês, mas isso só o tempo dirá.

De qualquer modo, como percebem os que já conheciam o blog, apaguei todas as postagens anteriores para um novo tipo de publicação.

Minha ideia inicial é falar sobre meu trabalho, claro. Mas eventualmente falarei sobre o trabalho per se, ou seja, sobre a cutelaria de modo mais amplo. Ou seja, abordarei temas que achar pertinente, tentarei fazer alguns tutoriais, mostrarei um pouco do processo... Enfim, será uma coisa mais solta mesmo.

Claro, também misturarei um pouco da ciência exata por trás da cutelaria com um pouco de minha poesia pessoal. Digo poesia no sentido de como eu vejo meu trabalho, minhas motivações, inspirações, meus momentos de devaneio enquanto estou temperando uma lâmina com uma nuvem de vapor saindo da coifa da minha forja... Afinal de contas, embora eu seja um artesão, me considero um pouco um artista. Ou um lunático, no meu caso. Como diria Ricardo Vilar, que me ensinou os primeiros passos nesse ofício, sou do tipo que "joga pedra em avião".

Por hora é só isso. Apenas uma reapresentação de mim mesmo para quem quer que leia.
Para os interessados em ver meu trabalho mais recente, acessem minha página do Facebook.

Abraços!